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Viviane Lima Martins[1]
Doutora e Mestre em Comunicação e
Semiótica PUC-SP
Bacharel e Licenciada em Letras
pela USP
Professora EBTT IFMG Campus Arcos
DOI: 10.5281/zenodo.4683657
Resumo: Seria o corpo somente uma
imagem que remete ao espetáculo e que deve corresponder a modelos impostos pela
sociedade e pelo consumo? O corpo humano é socialmente construído e,
considerado como texto, apresenta uma série de significações, e pode
representar a cultura de grupos socialmente desenvolvidos. Cada ser humano é,
obviamente, muito mais do que isso, pois possui identidade e autoestima
vinculadas à consciência corporal. A mídia apresenta o corpo como um
objeto a ser reconstruído, seja em seus contornos ou em seu gênero. Saturado de
estereótipos, o corpo, hoje, aparece como um quadro ainda inacabado. O culto ao
corpo é uma das características mais marcantes da sociedade contemporânea.
Cresce dia a dia o número de cirurgias estéticas, as academias de ginástica são
cada vez mais frequentadas por mulheres de todas as idades, o corpo torna-se
objeto de consumo. Substanciosos investimentos fazem as pessoas estarem em
constante busca da imagem ideal. O presente artigo faz uma análise semiótica
acerca da questão da estética e da beleza como forma de ascensão social,
estabelecendo um paralelo aos estigmas que nascem a partir dessa valorização
demasiada. Outro aspecto analisado diz respeito à posição do indivíduo que
busca entrar nos padrões estabelecidos pela sociedade, para que este possa ser
inserido em determinados grupos ou aceitos por eles.
Palavras-chave: Semiótica. Beleza. Sociedade de
Consumo. Estigmas.
Abstract: Is the
body only an image that refers to the spectacle and that must correspond to
models imposed by society and consumption? The human body is socially
constructed and, considered as text, presents a series of meanings, and can
represent the culture of socially developed groups. Every human being is
obviously much more than that, because he has identity and self-esteem linked
to body awareness. The media presents the body as an object to be
reconstructed, either in its contours or in its genre. Saturated with
stereotypes, the body today appears as a still unfinished picture. Body worship
is one of the most striking characteristics of contemporary society. The number
of cosmetic surgeries grows day by day, gyms are increasingly frequented by
women of all ages, the body becomes the object of consumption. Substantial
investments make people constantly searching for the ideal image. This article
makes a semiotic analysis of the issue of aesthetics and beauty as a form of
social ascension, establishing a parallel to the stigmas that are born from
this valuation too much. Another aspect analyzed concerns the position of the
individual who seeks to enter into the standards established by society, so
that it can be inserted into certain groups or accepted by them.
Keywords: Semiotics. Beauty. Consumer Society. Stigmata.
1.
Introdução: a valorização da beleza
A palavra beleza liga-se a algo muito real, que desperta sentimentos
intensos e inspira ações que vão da contemplação reverencial e silenciosa a
ousadias de ordem conceitual e/ou material para desfrutá-la e/ou produzi-la,
mas que também se furta a uma definição objetiva, remetendo a um sentimento
abstrato. Segundo as definições do brasileiro Aurélio e do francês Larousse,
respectivamente, beleza é registrada como “coisa bela, muito agradável, ou
muito gostosa” e “harmonia física, moral ou artística, que inspira admiração e
encantamento”.
Cosméticos, maquiagem, cirurgia estética, dermatologistas, personal trainers, estilistas e
profissionais da elegância permitem que os usuários possam mobilizar recursos e
operar expedientes para “estar em boa forma”, ideal ardentemente perseguido.
Conforme Goldenberg e Ramos (2001), o corpo está sendo apropriado por “muitos
indivíduos ou grupos” como “meio de expressão (ou representação) do eu”,
fenômeno que, segundo os autores, é facilmente compreendido em “um contexto
social e histórico particularmente instável e mutante, no qual os meios
tradicionais de produção de identidade – a família, a religião, a política, o
trabalho, entre outros – se encontram enfraquecidos” (idem, p. 21).
Conforme destacou Rose de Melo Rocha,
Corpos perfeitos são corpos vulneráveis. E a esta
vulnerabilidade se apresenta, como única possibilidade, a devoração. Obviamente
não se trata de devoração qualquer: ela só pode se dar em imagem. Corpos
perfeitos são feitos para o consumo. E só podem ser consumidos pelo olhar.
(ROCHA, 2005, p. 101)
A mídia semanal se apropria desta natureza, sugerindo de forma intensa,
assim, o culto ao corpo. Embora mecanismo altamente eficiente de
individualização, ao responsabilizar cada indivíduo por sua aparência, isto é,
instaurando uma nova moralidade, a da “boa forma”, referida à juventude, beleza
e saúde e, conseqüentemente, acentuando particularismos ao fazer de cada
indivíduo uma espécie de controlador de cada detalhe de seu corpo e aparência,
faz coexistir, ao lado desses movimentos que promovem ou acirram uma espécie de
autocentramento ou individualização, a voz de outros imperativos – faça, viva,
mude -, igualmente eficazes, porém opostos e contraditórios.
Quanto mais se impõe o ideal de autonomia
individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais do
corpo. Se é bem verdade que o corpo se emancipou de muitas de suas antigas
prisões sexuais, procriadoras ou indumentárias, atualmente encontra-se
submetido a coerções estéticas mais imperativas e geradoras de ansiedade do que
antigamente. (GOLDENBERG e RAMOS, 2002, p. 9).
A existência de ampla gama de procedimentos, como os regimes de
emagrecimento e de modelagem do corpo, a multiplicação e a disseminação de
intervenções estéticas cirúrgicas e cosméticas que “corrigem” narizes, seios e
outras partes do corpo, testemunham “o poder normalizador dos modelos”. Na
“cultura do corpo” há como que um encontro entre dois ideais distintos: “um
desejo maior de conformidade estética”, de um lado, e “o ideal individualista e
sua exigência de singularização dos sujeitos”, de outro.
De toda forma, seja como lugar de singularização, seja como lugar de
projeção de modelos idealizados, o corpo é caracterizado antes de mais nada com
um valor nas camadas médias, o que torna fácil entender por que é uma “natureza
cultivada” (BOURDIEU, 1987), isto é, um corpo coberto por signos distintivos
que, segundo os autores, sintetizariam simultaneamente três ideias:
A de insígnia (ou emblema) do policial que cada um
tem dentro de si para controlar, aprisionar e domesticar seu corpo para atingir
a ‘boa forma’, a de grife (ou marca), símbolo de um pertencimento que distingue
como superior aquele que o possui e a de prêmio (ou medalha) justamente
merecido pelos que conseguiram alcançar, por intermédio de muito esforço e
sacrifício, as formas físicas mais “civilizadas” (BOURDIEU, 1987, p. 39).
Segundo Lipovetsky e Charles (2004), o mundo pós-moderno emerge quando a
sociedade inteira se reestrutura pela lógica da sedução, da renovação
permanente e da diferenciação marginal, quebrando os padrões disciplinares,
porém, exercendo um poder sobre os indivíduos pela escolha e pela
espetacularidade. Os freios institucionais que se opunham à emancipação
individual moderna desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos subjetivos
da realização individual e do amor próprio. Elementos como o aumento da
produção industrial, a difusão de produtos possibilitados pelo progresso dos
transportes e da comunicação, métodos comercias do capitalismo moderno
(marketing, grandes lojas, marcas, publicidade) desenvolveram-se ao longo do
século passado e permitiram a definição da sociedade tardo-moderna como
hipermoderna.
Para Berger (2007), o culto à magreza iniciou-se já nos primórdios do
século XX, embora se potencializasse somente a partir da metade do mesmo e
tivesse seu auge a partir dos anos de 90, momento em que o culto ao corpo e os
modelos corporais a ele associados ganharam maior visibilidade, inclusive, por
influência direta da mídia. A autora destaca que, conforme Perrot (1984), a mulher
magra foi mais do que uma moda, foi o desabrochar de uma mística da magreza,
uma mitologia da linha, uma obsessão pelo emagrecimento, tudo isso temperado
pelo uso de roupas fusiformes (apud
DEL PRIORI, 2000, p. 66)
Diante dos padrões da sociedade hipermoderna, a sedução a partir da
imagem passou a ser amplamente explorada pela mídia que investe na criação do
look personalizado, buscando humanizar uma marca ou padrão, dar-lhes uma alma,
psicologizá-los. A beleza se tornou arma clássica da sedução, e passou a ser
amplamente explorada nas campanhas publicitárias de cosméticos, por exemplo, em
que se observa intensa exploração da imagem da juventude, da beleza eterna, do
luxo e das aparências hollywoodianas. A sedução não se dá a partir de uma
mensagem imposta, mas com a criação da sensação de bem-estar no indivíduo,
envolvendo-o por espetáculo e fantasia (LIPOVETSKY, 1989).
2.
Aspectos culturais da beleza e do corpo ao longo do tempo
Para que possamos entender os sentidos construídos para o corpo na atualidade,
é necessária uma breve explanação histórica, para que algumas peculiaridades
sejam trazidas e possamos verificar quais aspectos foram incorporados ao mesmo
ao longo dos séculos. Desse modo, procuraremos aos poucos, revelar como a
história tratou o corpo, destacando traços que se sobressaíram em determinados
períodos ao longo dos séculos.
Inicialmente, há alguns aspectos peculiares ligados ao modo pelo qual o
corpo era visto na Antiguidade. De acordo com Ramminger (2000), no século V-IV
AC., filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles, determinaram a oposição de
dualidade no mundo: o material e o ideal, o corpo e a alma, o desejo e o
pensamento. No entanto, os antecessores de Sócrates pensavam o indivíduo de
forma integrada. Corpo, pensamento e o mundo invisível dos deuses faziam parte
de um só domínio, a physis. Assim, de
acordo com Siebert (1995) e Laqueur (1990), o corpo na Grécia antiga era visto
como elemento de glorificação e de interesse do Estado. O corpo era valorizado
por sua capacidade atlética, sua saúde e fertilidade.
É importante notar que, segundo Laqueur (1990) & Nicholson (2000),
desde a Grécia até o século XVIII, persistiu a visão unissexuada do corpo, ou
seja, o modelo de sexo único: homens e mulheres eram considerados da mesma natureza
biológica. O corpo feminino é visto como inferior ao corpo masculino, sendo que
a diferença residia no grau de calor do corpo, quanto mais quente, mais
perfeito. Por ser possuidor de maior calor vital, os órgãos sexuais masculinos
eram mais desenvolvidos que os femininos. Essa frieza relativa do corpo da
mulher impedia que seus genitais fossem exteriorizados, assim vagina e colo do
útero não eram considerados algo distinto do pênis, mas constituíam, juntos,
uma versão do pênis menos desenvolvida.
Dando um salto na linha do tempo, durante a Idade Média, toda e qualquer
preocupação com o corpo era proibida. A influência da Igreja era grande, e até
os Jogos Olímpicos, iniciados na Grécia Antiga, foram extintos. Passava, então,
a evidenciar-se a separação do corpo e da alma, prevalecendo a força da segunda
sobre o primeiro. Segundo Laqueur (1990), o bem da alma estava acima dos
desejos e prazeres da carne e, portanto, acima dos aspectos materiais. O corpo
tornou-se culpado, perverso e necessitado de purificação. Nesse sentido, havia
o incentivo ao autoflagelo, a enforcamentos, apedrejamentos e execuções em
praça pública. De acordo com Siebert (1995), os dados encontrados na Idade
Média quanto à cultura corporal são de acentuado desprestígio.
Com o término da Idade das Trevas, inicia-se no Período Renascentista
uma nova concepção de corpo, que difere das anteriores, pois começou a haver
preocupação com a liberdade do ser humano. O trabalho do artesão e a realização
terrena passam a ser valorizados, juntamente com o pensamento científico e o
estudo do corpo.
No período renascentista, surge o protótipo da ciência do corpo que nos
instiga hoje: a ciência do corpo. O corpo é visto como um objeto técnico
instrumental que opera com bases em códigos estéticos perfeitamente
milimétricos, como um autônomo que, por meio de operações e cálculos, torna-se
previsível e controlável e que tem como analogia a máquina, modelo de
Descartes. Assim, o corpo passa a servir à razão.
Nos séculos seguintes, especialmente nos séculos XVIII e IX, o saber
passou a ocupar um papel de destaque; a preocupação passa, então, a focar a
formação de indivíduos ativos e livres, com ênfase na liberdade do corpo,
contrariando as práticas mecanicistas. No século XVIII emergiu um outro modelo
de diferenciação sexual: o modelo dos dois sexos, ou seja, a visão bissexuada
do corpo e a redefinição da natureza feminina. O corpo feminino passou ser
visto como algo totalmente diferente do masculino, introduzindo-se a questão
binária, o que leva ao aparecimento da identidade sexual, ocasionando o
aparecimento da identidade de gênero (mulher/homem) nas convenções sociais,
políticas, culturais, artísticas, conforme Laqueur (1990). Socialmente, e
principalmente pela difusão feita pela religião católica, ao homem foi
atribuído o perfil de dominador, de detentor da razão, e à mulher deu-se o
modelo de exterioridade, de preocupação com a beleza, de reprodução, de mãe, de
objeto de prazer.
Com a virada do século XX, o indivíduo ficou cada vez mais atrelado à
técnica e à tecnologia. Havia dois tipos distintos de anseios: o burguês, que
passou a depositar sua felicidade na busca do progresso, sendo assim, os corpos
precisavam trabalhar para concretizar essa verdade; e o proletário, o qual o
corpo precisava estar forte o suficiente para trabalhar e não morrer de fome.
Para Siebert (1995), junto com a industrialização, na metade do século XX, os
meios de comunicação começaram a funcionar como propulsores da comunicação de
massa. O corpo pode ser reproduzido em série, através da fotografia, do cinema, da televisão, da
internet, etc.
Apesar das mudanças no que diz respeito à visão do corpo na sociedade,
apenas na segunda metade do século XX, segundo Goldenberg (2002), o culto ao
corpo ganhou uma dimensão social inédita e entrou na era das massas. A difusão generalizada das normas e imagens, a profissionalização do
ideal estético e a grande preocupação com os cuidados do rosto e do corpo
fundam a idéia de um novo momento da história da beleza feminina, em maior
escala, e, em menor grau, a masculina. Cada indivíduo é considerado responsável
por sua juventude, beleza e saúde. Desta forma, o corpo torna-se, também, capital,
cercado de enormes investimentos (de tempo, dinheiro, entre outros), com a
conseqüente obsessão com a magreza, havendo a multiplicação dos regimes e
atividades de modelagem do corpo, a disseminação da lipoaspiração, dos
implantes de próteses de silicone nos seios, de botox para atenuar as marcas de
expressão, intervenções que testemunham o poder normatizador dos modelos de
beleza e saúde cada vez mais acentuados na atualidade.
3. Quando se está fora do padrão:
estigmas sociais acerca do corpo
Goffman (1988) destaca que:
A
sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos
considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas
categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm
possibilidade de serem neles encontrados. (GOFFMAN, 1988, p. 11 e 12)
Dessa maneira, o estigma refere-se à “(...) situação
do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena” (GOFFMAN,
1988, p. 7) e, conseqüentemente, promove uma generalização e a desumanização do
portador de algum tipo de diferença significativa.
Um dos
maiores referenciais quando se fala em beleza é vinculado ao culto à magreza, e
está quase sempre direcionado aos interesses hegemônicos da sociedade e do
capital fazendo-se associação constante à riqueza, à beleza, à fama, à
inteligência e, mais recentemente, à saúde.
É através
de uma forte aliança entre diversos poderes que a magreza chegou a imperar
atualmente, impulsionada pela representação nas mídias. A contribuição da mídia
foi hiperbolizar a re-significação social acerca da gordura/magreza, tanto no
que diz respeito a descobertas medicinais quanto a interesses da indústria
cosmética e alimentícia. Ao disseminar os discursos dos setores dominantes, a
mídia funciona como produtora de sentidos. Sobre essa produção de sentidos
(modalização) do que se chama de informação imagética pela mídia, Santaella
(1999) esclarece:
A maioria
das estratégias manipuladoras da informação pictória nos meios de comunicação
não são falsificações diretas da realidade expressas de maneira assertiva, mas
manipulações através de uma pluralidade de modos indiretos de transmitir
significados. (SANTAELLA, 1999, p. 208)
No caso do
fenômeno da magreza, a imagem do corpo magro é projetada e tem seu sentido
legitimado pela mídia de maneira constante. O mundo da moda, representando os
poderes do capital e da beleza, foi o primeiro a ganhar destaque na comunicação
de massa, trazendo a magreza como valor desejado pelas mulheres. Assim, a
imagem da mulher magra saltou passarelas também para as capas de revista, as
novelas, os filmes, os reality shows, para o comando de programas, para
a apresentação de noticiários, enfim, tomou ligar em todos os veículos da
mídia.
Na medida
em que o corpo esbelto e firme torna-se uma norma consensual e agrega
representações imaginárias de supervalorização e prestígio, que a mulher, em
nossos dias atuais, não sonha em ser mais magra? Mesmo as que não apresentam
nenhum excesso de peso por vezes desejam emagrecer.
O culto ao
corpo pode demasiado pode conduzir a problemas patológicos. As doenças ligadas
à falta de alimentação, como anorexia e bulimia, são cada vez mais frequentes.
Atualmente, muitas pessoas se preocupam muito com o visual, esquecendo a saúde.
O indivíduo é um ser incansável e está sempre à procura de milagres para sanar
problemas como, por exemplo, o excesso de peso e a celulite, sem se preocupar
com as conseqüências de tais procedimentos, cometendo verdadeiras insanidades
na esperança de resolver a questão do dia para a noite. Vemos, hoje, inúmeros
problemas de saúde que não existiam com tanta freqüência há 10 anos. Por quê? Certamente
em decorrência da má alimentação atual. Mas o problema não está em encontrar-se
um pouco acima do peso, pois hoje sabemos que é possível ser um “gordinho
saudável”; o problema está nas tentativas radicais para perder peso a qualquer
custo.
Assim,
temos uma dualidade. A magreza, utilizada como objeto do discurso, ora é
incentivada e valorizada pela sociedade, através da imagem de belas mulheres
bem-sucedidas, ora é negativizada pela exposição dos riscos que pode trazer.
Na
tentativa de tornar-se um estabelecido, termo usado por Elias e Scotson
(2000), os indivíduos considerados “diferentes” pela maioria podem vir a sentir
vergonha ou culpa diante dos símbolos de inferioridade que lhes são atribuídos,
bem como a paralisia da capacidade de revidar que costuma acompanha-los.
É o que acontece àqueles que, para atingir o patamar dito da
normalidade estética recorrem a cirurgias plásticas. O aumento da procura por cirurgias plásticas é
fruto da excessiva valorização da padronização da beleza e da aparência pela
mídia, que exclui e satiriza quem está fora desses parâmetros, como a gordinha
desengonçada que é amiga secundária da bela protagonista ou o mocinho com seus
brilhantes olhos azuis, contra a miopia do invejoso vilão. Estes são exemplos
de enredos com que nos deparamos nas novelas nacionais e nos filmes
hollywoodianos. Nunca foi tão fácil para a indústria da beleza inserir seus
produtos e suas novidades no campo da cirurgia plástica, como na sociedade de
hoje.
Segundo Maria Rita Kehl:
O
corpo-imagem que você apresenta ao espelho da sociedade vai determinar sua
felicidade não por despertar o desejo ou o amor de alguém, mas por constituir o
objeto privilegiado do seu amor próprio: a tão propalada autoestima, a que se
reduziram todas as questões subjetivas na cultura do narcisismo. (KEHL, 2003,
p.254)
Se por um
lado corpos magros são usados como referência para ascensão social, por outro,
encontra-se o estigma que recai sobre os gordos. Como já destacado
anteriormente, em nenhuma outra época, o corpo magro adquiriu um sentido de
corpo ideal e esteve tão em evidência como nos dias atuais: esse corpo, nu ou
vestido, exposto em diversas revistas femininas e masculinas, está
definitivamente na moda: é capa de revistas, matérias de jornais, manchetes
publicitárias, e se transformou em um sonho de consumo para milhares de
pessoas, nem que, para isso, elas tenham que passar por intervenções cirúrgicas
(plásticas), dietas de todos os tipos (do sangue, da melancia etc) ou
exercícios físicos dos mais variados. Atualmente, parece existir apenas um tipo
de corpo possível - o corpo magro. Vivemos em uma época de “lipofobia” como
denominou Fischler (1995) e que está diretamente associada a uma “obsessão pela
magreza, sua rejeição quase maníaca à obesidade” (FISCHLER, 1995, p.15).
A sociedade contemporânea, ao valorizar a magreza, transforma a gordura
em um símbolo de falência moral, e o gordo, mais do que apresentar um peso
socialmente inadequado, massa a carregar um caráter pejorativo. Ser gordo, hoje, denota descuido, preguiça, desleixo, falta de
disciplina. Tamanha obsessão em se alcançar um corpo magro, traz à tona também
a questão de uma imposição de um tipo ideal de corpo que, na maioria das vezes,
é inatingível e que relega à periferia da sociedade as pessoas que não partem
nesta busca e acabam sendo tidas como desviantes. Segundo
Becker (1985), a noção de desvio reside no fato de que as regras sobre o
comportamento desviante são ditadas por grupos sociais que estabelecem regras,
julgamentos e sanções a partir de suas posições e cuja infração constitui um
desvio, e as pessoas que transgridem tais regras são marcadas como outsiders.
Neste campo, temos a obesidade como fator determinante totalmente outsider,
conforme bem coloca Elias e Scotson. Em sociedade a maioria das pessoas não se
conhece, porém existe uma ordem oculta que não é perceptível pelos sentidos,
porque “cada pessoa nesse
turbilhão faz parte de determinado lugar” (ELIAS e SCOTSON, 1994, p.
21). Essa ordem invisível é uma rede de funções interdependentes pela qual as
pessoas estão ligadas entre si, tendo peso e leis próprias.
Outro ponto importante que nos chama atenção, ao analisarmos a figura
que a mídia faz de pessoas gordas, é o surgimento dos chamados “ex-gordos”,
isto é, aqueles que, de alguma forma, alcançaram a plenitude desejada por todo
gordo: ser e permanecer magro. Estes fazem questão de ressaltar, nos seus
discursos, as mudanças maravilhosas que ocorreram em suas vidas, após perderem
o excesso de gordura, seja através de dieta ou operações plásticas,
conquistando uma autoestima associada a um reconhecimento social.
Finalmente, outro grupo de outsiders, nesta sociedade que cultua
o corpo saudável e bonito, é o da terceira idade. A busca incansável pela
juventude prolongada não tem idade: cosméticos prometem milagres, desde que os
usemos a partir dos 25 anos de idade. Os segredos são revelados pela mídia
semanal, expostos em capas que demonstram as maravilhas de se manter jovem.
Esta idéia nos leva a pensar que a imagem da juventude, associada ao corpo
perfeito e ideal - que envolve as noções de saúde, vitalidade, dinamismo e,
acima de tudo, beleza -atravessa, contemporaneamente, os diferentes gêneros,
todas as faixas etárias e varias classes sociais, perpassando e compondo, de
maneira diferenciada, diversos estilos de vida.
Segundo Kehl:
A velhice torna-se aterradora
quando o tempo vivido não tem nenhum valor. O mito da eterna juventude, no
limite, tende a produzir corpos sem histórias, dos quais tentamos apagar, com o
auxílio da medicina, todas as marcas do passado. E como é impossível ostentar
uma aparência jovem sem adotar “atitudes” jovens, vamos vendo que a vida já não
pode nos acrescentar mais experiências nem sabedoria. (KEHL, 2003, p. 258)
Desta
forma, o indivíduo tenta adequar-se à sociedade de maneira a ser aceito e
absorvido por ela. Conformo bem destacou Kehl (2003):
O sujeito moderno, cercado e
amparado por técnicas e saberes científicos que visam lhe proporcionar saúde,
bem-estar corporal e um adiamento indefinido da morte, está ao mesmo tempo cada
vez mais distante de saber escutar as demandas e manifestações de seu corpo
pulsional. Acostumado a adiar o prazer e a satisfação de necessidades, já não é
capaz de desfrutar da sexualidade, do repouso, do ócio e das pequenas sensações
provocadas pelo contato com a natureza. (KEHL, 2003, p. 256)
4. Considerações finais
O corpo representado na mídia é belo, saudável, restrito a uma parcela
muito pequena da sociedade, limitado, muitas vezes, por fatores financeiros.
Seria o
corpo somente uma imagem que remete ao espetáculo e que deve corresponder a
modelos impostos pela sociedade e pelo consumo? Cada ser humano é, obviamente,
muito mais do que isso. Possui identidade e autoestima vinculadas à consciência
corporal. Hoje, não se nega a importância do corpo. Muitas são as teorias que
tratam do desenvolvimento humano e valorizam o corpo, como a psicanálise de
Freud (1905), por exemplo, para quem o ego é acima de tudo corporal. O corpo é
belo, o corpo cresce, mas também pode adoecer, deformar-se, e morrer.
O culto
ao corpo é uma das características mais marcantes da sociedade contemporânea.
Cresce dia a dia o número de cirurgias estéticas, as academias de ginástica são
cada vez mais freqüentadas por mulheres de todas as idades, o corpo torna-se objeto
de consumo. Substanciosos investimentos fazem as pessoas estarem em constante
busca da imagem ideal. As mulheres no decorrer da história são apontadas como
mais suscetíveis à imposição social pelo padrão ideal de beleza, muitas vezes
acarretando em distorção da imagem corporal e transtornos alimentares.
Como qualquer outra realidade do mundo, o corpo humano também é
socialmente construído. Segundo Baitello Jr (2005, pág. 56), o corpo,
considerado como texto, apresenta uma série de significações, e pode
representar a cultura dos grupos, que pode ser lido a fim de que se tenha maior
conhecimento das características de determinada cultura. A partir da alteração
das relações sociais, as representações dos corpos também são alteradas.
De acordo com Santaella (1999), o corpo é construído no sentido
simbólico-cultural, visto que assume significados diferentes ao longo da
história, mas é também materialidade, permanência e identidade, e a análise da
representação social do corpo possibilita entender a estrutura de uma
sociedade. Na vida social são privilegiadas características e atributos
específicos que deve ter o homem e/ou a mulher, sejam morais, intelectuais ou
físicos; tais atributos são, basicamente, os mesmos para toda a sociedade,
embora possam ter diferentes nuances e às vezes profundos contrastes para
determinados grupos, classes ou categorias que fazem parte da sociedade. Assim,
o corpo humano, além de seu caráter biológico, é afetado pela religião, grupo
familiar, classe, cultura e outras intervenções sociais. Desta forma, cumpre
uma função ideológica, isto é, a aparência funciona como garantia ou não da
integridade e da importância de uma pessoa, em termos de grau de proximidade ou
de afastamento em relação ao conjunto de atributos que caracterizam a imagem
dos indivíduos.
De qualquer forma, esses
fatores causam muito sofrimento ao indivíduo estigmatizado, que acaba por se
isolar da sociedade e, assim, perdendo a motivação para modificar seu estilo de
vida. Ao tentar uma aproximação, um contato, eles encontram várias barreiras
para conseguirem faze-los. Quando não conseguem, vem a culpa pelo fracasso,
surgindo decisões como: esconder o estigma; trocar de nome; a conscientização
de que não podem ser eles mesmos, tendo que aprender a serem diferentes e encontrar
uma segunda maneira de ser; e, acabam por perder a sua identidade se tornando
um objeto da sociedade.
A própria sociedade estabelece os
meios de categorizar as pessoas e os atributos considerados comuns para eles.
Ao conhecer uma pessoa, os primeiros aspectos observados permitem prever sua
“identidade social”. Com isso, muitas vezes lhes são imputadas características
que nem sempre são reais. Muitas vezes podem surgir evidências de que a outra
pessoa possui um atributo que o torna diferente dos outros. Esse indivíduo pode
deixar de ser considerado em sua plenitude e pode ser reduzido, até mesmo, a
sua pessoa inferior. Tal característica é um estigma, principalmente quando seu
efeito de descrédito é grande, muitas vezes considerado até como um defeito.
(GOFFMAN, 1988, p 14)
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Recebido
em 23 de fevereiro de 2021
Publicado
em 09 de abril de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
MARTINS, Viviane Lima. Valores
Estéticos e Estigmas Sociais Ligados ao Culto à Beleza: Uma Análise Semiótica. Revista MultiAtual, v. 2, n. 4, 09 de abril
de 2021. Disponível em: https://www.multiatual.com.br/2021/04/valores-esteticos-e-estigmas-sociais.html
[1] Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica PUC-SP; Bacharel e
Licenciada em Letras pela USP; Professora EBTT IFMG Campus Arcos. E-mail:
Viviane.martins@ifmg.edu.br