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Luciana de Fátima Ferreira
Mestre em Letras pela UFOP, cursando
Especialização em docência pelo IFMG, campus Arcos.
Resumo
Este artigo traz algumas questões
introdutórias que versam sobre a memória discursiva e o imaginário sócio
discursivo, detendo-se, especificamente, ao imaginário sóciodiscursivo que podemos identificar na atualidade dessa
escrita e que se relaciona ao universo educacional do contexto brasileiro cujos
discursos dominantes indicam privilegiar o ideal de educação baseado em valores
neoliberais; para ilustrar minimamente nossa argumentação, que abarca elementos
presentes nos discursos atuais, faremos uma análise preliminar de alguns
trechos de um documento oficial da Secretaria de Estado da Educação de Minas
Gerais (que foi criado para anunciar a volta às aulas em regime não presencial
após um período de três meses de isolamento social necessário devido à pandemia
do COVID-19), e de um trecho do plano de governo do governador Romeu Zema;
procuraremos encontrar elementos que nos possibilitem revelar estratégias
discursivas que indiquem a existência de tendências neoliberais nos discursos
dominantes em nossa sociedade. Para essa análise introdutória, faremos também
uma breve narrativa sobre medidas e situações ocorridas no cenário educacional
que servirão de base para legitimar os argumentos utilizados neste levantamento
preliminar sobre a formação e a constituição de um imaginário sóciodiscursivo
do tempo dessa escrita, imaginário capaz de revelar, talvez, os mecanismos que
determinem as relações em diversos setores da sociedade.
Palavras-chave:
Análise do discurso, Educação, Imaginário sóciodiscursivo
Resume
This article brings some introductory
questions that deal with the discursive memory and the socio-discursive
imaginary, focusing, specifically, on the socio-discursive imaginary that we
can identify at the present time of this writing and that is related to the
educational universe of the Brazilian context whose dominant discourses
indicate to privilege the ideal of education based on neoliberal values; to
minimally illustrate our argument, which includes elements present in the
current speeches, we will make a preliminary analysis of some excerpts from an
official document of the Minas Gerais State Department of Education (which was
created to announce the return to school in a non-face-to-face regime after a
three-month period of social isolation required due to the COVID-19 pandemic),
and an excerpt from Governor Romeu Zema's government plan; we will seek to find
elements that enable us to reveal discursive strategies that indicate the
existence of neoliberal tendencies in the dominant discourses in our society.
For this introductory analysis, we will also make a brief narrative about
measures and situations that occurred in the educational scenario that will
serve as a basis to legitimize the arguments used in this preliminary survey on
the formation and constitution of a socio-discursive imaginary of the time of
this writing, an imaginary capable of revealing, perhaps, the mechanisms that
determine relationships in different sectors of society.
Keyword:
Discourse analysis, Education, Socio-discursive imaginary
Introdução
Procuramos,
com essa pequena e preliminar análise, lançar questões e possíveis
direcionamentos para futuros trabalhos que pretendam discorrer sobre elementos
dos cenários sóciodiscursivos que fazem parte do universo educacional
brasileiro; tais questionamentos mostram-se importantes para a compreensão
sobre como esses imaginários podem ser construídos através da história e como
eles influenciam ou determinam políticas públicas educacionais que nem sempre
beneficiam a maior parte da sociedade.
Faremos
uma breve explanação sobre os conceitos que nos apoiarão nessas análises
preliminares e, em seguida, recapitularemos alguns fatos que nos ajudarão a
compreender como os discursos se materializam em ações governamentais. Depois
dessa introdução, analisaremos pequenos trechos de textos oficiais que nos
possibilitarão vislumbrar as tendências ideológicas dos discursos dominantes.
A
tentativa de compreender os elementos que constituem o imaginário
sóciodiscursivo que se relacionam a determinados campos, aqui, ao campo
educacional, é importante para que possamos compreender, também, como se dão os
processos hegemônicos que determinam condições e relações sociais, pois é
através desse imaginário que as relações sociais são estabelecidas,
compreendidas e aceitas; o imaginário sóciodiscursivo nos revela os valores de
uma determinada sociedade, ele diz sobre o que é aceito, desejável ou
condenável, ele possibilita que projetos sejam criados e que gerem adesão da
sociedade com base nesses valores que dela fazem parte. A educação, ou seja,
esse complexo arcabouço de teorias, estruturas, políticas e ideais que
configuram medidas tomadas para suprir a necessidade de se instruir o ser
humano, de forma-lo ou de “formata-lo” em determinada direção, é um dos
principais instrumentos na formação de valores e na construção do imaginário
sóciodiscursivo, assim sendo a relevância dos estudos sobre esse tema parece
aceitável.
A
memória discursiva e o imaginário sóciodiscursivo
A memória discursiva é
responsável por oferecer as bases semânticas e estruturais dos discursos, essas
bases constroem-se e materializam-se
através das repetições ou de reformulações de enunciados que pertencem a
uma determinada formação discursiva[1]. Podemos dizer que a
memória discursiva é constituída por duas esferas, que são a da materialidade
do discurso e a que diz respeito a conhecimentos adquiridos socialmente, sendo
assim, a relação entre o discurso e a memória se daria em dois planos que são
complementares, esses planos são o da história e o da textualidade, sendo que
este segundo seria constituído de elementos textuais da memória discursiva que
possibilitam a coesão textual; essa memória textual tratar-se-ia do
conhecimento prévio de elementos textuais discursivos, como a anáfora, os
tempos verbais, as pressuposições, etc.; esses elementos são adquiridos nas
experiências de trocas dialógicas e na compreensão do funcionamento destes
dentro de um discurso (CHARAUDEAU e MINGUENEAU, 2006). Ainda, segundo os
autores, a memória discursiva não se trataria de uma memória psicológica, mas
de uma memória que estaria ligada de forma inseparável ao modo de existência
das formações discursivas, isso quer dizer que o discurso construiria para si,
progressivamente, uma memória intratextual, remetendo-se a enunciados precedentes,
e através desses, reconstruindo significados a todo momento.
Segundo (CHARAUDEAU, 2006),
essa memória discursiva seria constituída também pelos conhecimentos, crenças e
saberes sobre o mundo, ou seja, os discursos que circulam socialmente estariam
presentes na formação das identidades coletivas de grupos que compartilham o
mesmo sistema de valores. Haveria também a memória das situações de comunicação
(que abarcaria elementos que normatizam as trocas comunicativas, possibilitando
que os interagentes possam estabelecer uma espécie de contrato de
reconhecimento, construindo comunidades comunicacionais), e a memória das
formas (que tratar-se-ia daquela constituída em torno das maneiras de dizer, ou
seja, fariam parte dela os usos da linguagem, seja ela verbal, gestual ou
icônica). Estas memórias estariam inter-relacionadas e possibilitariam que o
sujeito se situasse e situasse os discursos de acordo com o que essas memórias
possibilitassem dentro dos usos e das relações realizadas através da linguagem,
ainda propiciariam o funcionamento das interações discursivas e seriam
responsáveis pela manutenção ou quebra de paradigmas discursivos; essa quebra
de paradigmas discursivos, ou seja, as mudanças que podem ocorrer no discurso
gerando novas significações que acontecimentos históricos podem trazer através
de novos enunciados que desestabilizariam o que normalmente é dito, afetariam
exatamente essa memória discursiva, ou seja, os sentidos que se constituem
através do entrecruzamento das memórias mítica, social e da memória histórica
(PÊUCHEX, 1999). A essa tensão gerada no discurso trazida por acontecimentos
históricos que resignificam elementos do discurso, Pêcheux chamou de
“acontecimento discursivo”.
Podemos dizer que o nosso
universo representacional é, de certa forma, estabelecido por nossas memórias
discursivas, mas, é a partir das relações entre todos os elementos discursivos
e novos acontecimentos que venham desestabilizar uma significação, é que novos
sentidos vão sendo estabelecidos, tendo
como premissa a gama de sentidos anteriores, ou seja, o nosso imaginário
sóciodiscursivo não seria construído apenas em determinadas situações
interativas pelos participantes do discurso, mas o sentido que é dado a tudo
que nos rodeia também é construído anteriormente a nós mesmos, embora possamos
ter a ilusão de que somos a fonte do que dizemos e pensamos.
Quando viemos ao mundo,
somos inseridos em um universo formado por seus paradigmas, por seus discursos
e pré-discursos[2],
um mundo que nos é apresentado e no qual somos levados a incorporar e
resignificar conceitos e representações de tudo o que dele faz parte, ou seja,
grande parte dos imaginários com os quais o sujeito convive já está presente na
sociedade antes mesmo que ele venha ao mundo. Essa noção de imaginário sócio
discursivo está presente em CHARAUDEAU (2017); esse autor afirma que esse
conceito diz respeito a uma “forma de apreensão do mundo que nasce na mecânica
das representações sociais”. Considerando o explicitado, podemos dizer que o
imaginário sócio discursivo diria respeito à construção da significação sobre o
mundo que nos rodeia, sobre as coisas, as pessoas, os fenômenos, os
comportamentos, ou seja, esse imaginário resultaria de um processo de
simbolização representacional do mundo no interior de um domínio de prática
social, o que daria a essas representações uma carga afetivo-racional,
instalando-se na memória coletiva; assim sendo, podemos dizer que o imaginário
seria a base da constituição de valores e teria a função de justificar atos, devido
a lógica que nos é fornecida por suas representações de mundo.
Neste trabalho, estamos
levando em consideração elementos do imaginário sócio discursivo que se
relaciona ao cenário educacional e que se apresenta na atualidade dessa
escrita, imaginário que pode ser vislumbrado pela análise de diversos discursos
existentes (através da análise das narrativas e das metanarrativas presentes em
vários meios de comunicação, virtuais ou físicos, assim como nas interações
cotidianas), nos quais podemos descrever, as estratégias
linguístico-discursivas utilizadas para se justificar a sustentação de um ideal
neoliberal da educação; uma dessas narrativas está presente em um memorando
expedido pela subsecretaria de Gestão de Recursos Humanos da Secretaria de
Estado da Educação de Minas Gerais que anuncia a volta às aulas no estado de
Minas Gerais, e que nos ajudará a ilustrar nosso argumento.
O
contexto da escrita: pandemia
O início do isolamento
social necessário devido a pandemia gerada pelo contágio do COVID-19 foi decretado para o dia 18 de março de 2020,
data também prevista para a greve geral dos trabalhadores da educação, sendo
que grande parte dos trabalhadores das escolas estaduais já estavam em greve
reivindicando melhorias e o cumprimento do piso salarial determinado por lei; a
revolta dos profissionais da educação aumentou com a aprovação, em primeiro
turno na assembleia legislativa, de um aumento de 42% nos salários dos
policiais civis e militares, e de 30% para a educação, sendo que o governo
ainda estava devendo o 13% salário dos funcionários; após grande impacto gerado
na mídia e de protestos de várias categorias, o governador Romeu Zema resolveu
sancionar parcialmente o aumento que passou a ser de 13% para os policiais, e
de nenhum percentual para as demais categorias. Este cenário inicial nos
oferece indícios sobre quais áreas são consideradas prioritárias na percepção
do governo em questão, que sem analisar os impactos que poderiam ser gerados na
economia, e desconsiderando a realidade, especificamente a que se relaciona à
precariedade em que trabalham os profissionais da educação, queria conceder um
aumento que não condizia com a realidade orçamentária do estado a uma categoria
específica, a única que acabou sendo contemplada.
A
descrição desse panorama é importante para a nossa análise, pois torna possível
que compreendamos as tendências ideológicas dos poderes governamentais em
questão, assim como as formações discursivas que estão presentes no contexto
apresentado. Um segundo documento que nos foi importante, trata-se do programa
do governo[3] do atual governador Romeu
Zema intitulado “Liberdade ainda que tardia” (referência à frase criada por
Alvarenga Peixoto e que teria sido lema da Inconfidência Mineira), em especial
a seção que dispõe sobre a educação; fica claro, através do documento produzido
para a campanha, que a equipe do atual governador possuía uma visão
mercadológica da educação e que o foco estaria nos resultados obtidos nos
programas avaliativos governamentais. Rechaça-se, assim, todo o conhecimento
construído ao longo de décadas por estudiosos e pedagogos importantes como
Paulo Freire, que negava a concepção de educação em que o conhecimento seria
tratado como um produto a ser consumido, ou como um índice avaliativo a ser
alcançado, pois considerava que a educação deveria promover a liberdade dos
indivíduos, ou seja, o indivíduo deveria tornar-se capaz de ler o mundo,
compreendê-lo e agir sobre ele, sendo que esse conhecimento sobre o mundo
deveria ser construído na interação com a sua realidade, quer dizer, na relação
direta dos conteúdos com o que faria sentido para este indivíduo em sua
realidade cotidiana.
O estudante, segundo Paulo
Freire, não é uma espécie de banco em que fazemos um depósito de conteúdos, e o
educador não é o detentor absoluto do conhecimento que irá transferi-lo para o
aluno que o receberia passivamente; o conhecimento nasceria da interação entre
educadores e educandos, sendo necessário, para isso, que o educador assumisse a
condição de educador-educando,
expressão que, segundo Antônio Carlos Gomes da Costa[4], inspirado nas teorias
“freirianas”, refere-se aos agentes básicos do processo educativo e à “dimensão
de educando (disposição de aprender, de ser “educado”) que deve existir em cada
educador”. Assim sendo, podemos considerar que a relação interativa, pessoal,
entre ambas as partes, também é peça fundamental no processo de construção do
conhecimento, e não pode ser sublimada, especialmente nos anos iniciais, quando
estão sendo formados os processos cognitivos dos indivíduos, ou, podemos dizer
também, que é quando está sendo formada a memória discursiva, especialmente na
dimensão que carrega os valores que os indivíduos levarão para as suas vidas;
neste sentido, a presença do educador no processo de aprendizagem é fundamental.
Podemos dizer que o plano do
governo apresenta uma visão enviesada de conceitos como o construtivismo[5] apresentando em suas
soluções para a educação mineira práticas que poderiam excluir o educador do
processo, com a premissa de que o conhecimento advém da construção pessoal do
indivíduo, e assim sendo, justifica possíveis medidas que poderiam deixar a
cargo do aluno e das famílias a maior parte desse processo educacional. Toda a
premissa de um discurso presente no programa de governo, e que nos remeteria
para soluções que buscariam privatizar serviços prestados pelo Estado, está se
confirmando com propostas e medidas que estão sendo tomadas lentamente, como,
por exemplo, o plano de implementação[6] de um modelo de escola
público-privada, a chamada “Escola Charter”, que foi divulgado no dia 13 de
setembro de 2020; as medidas planejadas e as que já foram tomadas pelo atual
governo mineiro confirmam a existência de ideais neoliberais[7] que caracterizam essa
gestão e que, podemos verificar, também fazem parte do imaginário
sóciodiscursivo de uma grande maioria popular, agindo como referentes que
guiariam e legitimariam políticas “necessárias para o progresso social”.
Temos,
aqui, algumas questões que influenciam em nossas reflexões, uma delas é a
campanha de desvalorização dos profissionais da educação que acontece há
décadas, o que podemos constatar realizando uma superficial análise de uma
enorme variedade de textos disponíveis[8], inclusive jornalísticos,
nos quais os discursos retratam os professores como “vagabundos”, descrevem
universidades como “antros de imoralidades”, e universitários como “drogados e
folgados”, além de apontar supostos privilégios que servidores públicos e
estudantes teriam ao receberem recursos governamentais. Sobre o papel da mídia
na formação discursiva sobre a educação, nos diz Silva (2016) em sua tese:
No
nosso estudo, defende-se a tese de que a mídia, alinhada com o discurso
neoliberal dominante no Brasil desde a década de 1990, produz relatos nos quais
a educação pública brasileira é desqualificada com a mobilização das mais
diferentes estratégias discursivas que objetivam desmantelar a proposta de
educação pública própria do Estado de bem-estar e tornar inquestionável a
proposta de organizar a educação básica brasileira de acordo com as regras e
procedimentos próprios da iniciativa privada. Esses relatos exaltam um Estado
de tipo empresarial, controlador e avaliador, e recorrentemente responsabilizam
os professores e os sindicatos que os representam pela qualidade da educação
pública brasileira, construindo-os como representantes do atraso que impedem a
reforma modernizadora que faria o Brasil avançar como nação. Dessa forma,
potencializa-se o discurso de controle e governamento da educação, com fins de
enquadrar seus atores na nova ordem mundial.
Essas qualificações
direcionadas aos elementos do cenário educacional, que passaram a fazer parte
do imaginário sócio discursivo dos brasileiros, fomentadas e sustentadas por
reportagens, muitas vezes, parciais,
unilaterais, generalizantes, e, algumas vezes, (em tempos de “Fakenews”),
inventadas, ajudaram, ao longo de décadas, a sedimentar um cenário carregado de
descrença e agressividade em relação a todos os setores da educação.
Atualmente, podemos verificar um discurso (sustentado por muitos daqueles que
se denominam “de direita”), que afirma que as escolas e as universidades foram
tomadas por “doutrinadores esquerdistas”, discurso sustentado publicamente pelo
ex-ministro da educação, Abhraham Weintraub[9], que pouco antes de se
demitir do ministério, assinou uma medida que pretendia acabar com o programa
de cotas, um “Gran finale” depois de uma trajetória recheada de medidas, falas
e aparições teatrais.
A
segunda questão que devemos considerar a fim de entender o imaginário sócio
discursivo identificável no tempo dessa escrita, é a visão mercadológica[10] que o atual governo
demonstra em relação à educação, pois este parece considerar o conhecimento como
um produto a ser adquirido, assim como relaciona alunos e pais a clientes,
qualificações que podemos identificar nas linhas do seu plano de governo,
programa que nos traz a proposta de melhorar a qualidade da educação com
algumas medidas, dentre elas, dando “autonomia aos alunos” em seus estudos;
essa visão mercadológica, ao que os discursos nos indicam, também faz parte dos
discursos sustentados por uma maioria popular, ou seja, tornou-se hegemônica[11] na sociedade atual que,
além de assumir que a educação funcione pela mesma lógica capitalista, ou seja,
que a educação deva gerar “lucros” na forma de indicativos avaliativos,
concedendo aos mais bem-sucedidos lugares especiais, assume também que ela deva
servir ao capital, formando mão de obra para abastecer o mercado.
Os
indícios
O memorando-circular nº
42/2020/SEE/SG é endereçado aos “superintendentes regionais de ensino, gestores
escolares, professores, especialistas, demais servidores e membros da
comunidade escolar”. Analisemos o primeiro parágrafo do memorando:
É com satisfação
que fomos autorizados a iniciarmos o Regime Especial de Atividades Não
Presenciais (REANP) a partir do dia 13 de maio de 2020, quarta-feira, com os
servidores das unidades escolares e Inspeção Escolar. No dia 18 de maio de
2020, segunda-feira, teremos a grata
satisfação de iniciarmos com os nossos estudantes.
Podemos
notar nesse trecho que a expressão “grata satisfação” foi utilizada duas vezes,
sinalizando a tentativa de exaltar o sentimento positivo em informar o retorno
das atividades, mesmo que não presenciais. A forma passiva em que aparece a
expressão em seguida, “fomos autorizados a iniciarmos”, indica que a secretaria
e os subsecretários que assinam o memorando não são os agentes, neste caso, da
paralisação das atividades, e que estavam ansiosos pelo retorno das atividades
que agora poderá ocorrer já que “alguém” autorizou o início das atividades
remotas. Esse trecho demonstra a priorização da continuidade do ano letivo
acima de outras circunstâncias, assim como indica a intenção de isenção de
responsabilidade pelo cessamento e pelo retorno das atividades escolares. O
terceiro parágrafo nos fornece indícios maiores sobre a perspectiva educacional
do governo:
Sendo
assim, nossas ações foram pensadas na perspectiva de que o estudante é o centro do processo e, por isso, consideramos também
as caracteríscas econômicas, sociais, geográficas e físicas para proporcionar
que ele acesse o Regime Especial de Avidades Não Presenciais (REANP),
contribuindo para que a educação chegue em cada domicílio do estado e não haja
ampliação das desigualdades educacionais.
No
trecho acima, podemos verificar a tentativa de se justificar a medida tomada de
forma vertical, ou seja, sem nenhuma participação da maior parte da comunidade escolar
a qual o documento se dirige, elencando características que talvez poderiam significar o fracasso das medidas,
já que a realidade social é de imensa desigualdade entre os alunos das escolas
públicas; essa desigualdade seria um argumento contrário ao sucesso, e, a fim
de minimizá-la, são utilizados argumentos que sinalizam que essas diferenças
foram analisadas a tempo e a contento. A expressão mais representativa deste
trecho e que deixa clara a perspectiva pedagógica sustentada pelo governo é “o estudante
é o centro do processo educacional”, condição que também aparece no plano de
governo do governador em questão, em um dos subtítulos que reproduziremos aqui:
Educação não se limita à escola e o
indivíduo é o principal agente de seu processo educador
Os
indivíduos são únicos. Quando o sistema é feito para tratar todos da mesma
forma, com carga horária e grade curricular padrão, alguns se sobressaem e
outros podem ficar para trás. Por como é sistematizada a educação pública, a
tendência é que o nível de exigência caia para não permitir a evasão e garantir
um mínimo denominador comum, atendendo ao maior número de pessoas possível. Esse sistema acaba por dificultar o
desenvolvimento de talentos, genialidades, criatividades, poder de raciocínio,
e restringir a busca de conteúdos e saberes que interessam a cada um.
Deve-se ter claro que as escolas são apenas um dos meios para a educação e, provavelmente, não o melhor. Normalmente, a escola não é o ambiente mais
adequado para promover a criatividade e habilidades individuais. Assim, o
ensino não pode ser entendido apenas como cumprimento da educação formal, mas
também como a busca do desenvolvimento do indivíduo em suas várias atividades e
interesses. Os estudantes podem potencializar seus talentos também fora das
escolas de diversas formas. É o conhecimento descentralizado e disperso,
levando em consideração a liberdade de escolha, que tornará possível elevar a
qualidade educacional.
Este
trecho nos é revelador, pois podemos verificar nele o mecanismo estratégico
utilizado na tentativa de agregar ao argumento que confere ao estudo à
distância, ou fora da instituição escolar, um status superior ao do ensino
presencial e sistematizado. É dito que a grade curricular padrão e a carga
horária geram desigualdades por tratarem todos da mesma forma, simplificando a
prática e a organização pedagógica que complementam essa estruturação escolar,
colocando, ainda, a causa do rebaixamento dos níveis de exigência para os
estudantes ao suposto tratamento impessoal que seria oferecido aos alunos. É
dito ainda que a escola, normalmente, não seria o meio mais adequado para se
promover as habilidades individuais e a criatividade. Se a escola não é o
ambiente mais adequado para essa promoção, qual seria esse meio? E quem seria o
responsável por essa promoção? O que é dito a seguir nos permite vislumbrar a
teoria por trás dos argumentos, pois segundo o texto, “os estudantes podem
potencializar seus talentos também fora das escolas de diversas formas”. O que
podemos apreender dessa fala é que o aluno deveria ser o responsável por suas
escolhas educacionais, fazendo isso em outros ambientes, como sua própria casa
ou qualquer outro tipo de instituição terceirizada, ou sem a estruturação que
as escolas estaduais mantêm atualmente. A justificativa é a de que “o
conhecimento descentralizado e disperso, levando em consideração a liberdade de
escolha, (...) tornará possível elevar a qualidade educacional.” Está posto o
argumento de que a escola é um ambiente ultrapassado, limitante e que não
permite que o aluno possa exercer sua individualidade e traçar seus próprios
caminhos dentro do conhecimento, apoiando-se falsamente e distorcidamente em
pressupostos teóricos pedagógicos.
Considerações
finais
Esses
pequenos trechos analisados apenas esboçam um ideário que aponta para os
valores neoliberais que circulam no imaginário sóciodiscursivo da sociedade, ou
seja, a defesa de menor intervenção do Estado na educação, a privatização de
serviços básicos, a valorização da meritocracia, e a formação tecnicista dos
indivíduos para que possam preencher as necessidades estabelecidas pelo
capitalismo. A não intervenção direta do Estado é tratada como benéfica e
necessária para que o aluno possa se “desenvolver” e exercer sua criatividade,
tomando suas próprias escolhas em relação ao seu programa de estudos, (embora
esses indivíduos estejam com idades entre 6 e 14 anos em média, muitos sem
condições básicas de sobrevivência, acesso à internet, ou com pais que possuam
uma formação mínima para orientá-los de alguma forma). A alegria presente no
trecho do memorando ao anunciar a volta às aulas parece visar minimizar as
decisões extraordinárias que seriam tomadas a seguir, quando aulas remotas
teriam início. As estratégias discursivas utilizadas (a hiperbolização dos
sentimentos positivos ao anunciar as medidas, a passividade em relação às
decisões, ao cessamento e ao reestabelecimento do regime escolar, a utilização
de argumentos que remetem de alguma forma às informações validadas
cientificamente, a utilização de argumentos de valorização das características
individuais) nos dizem sobre os metadiscursos que estão presentes nas
narrativas, metadiscursos que nos permitem visualizar os valores que sustentam
esses discursos e que promovem a adesão social e a validação das medidas
anunciadas.
Podemos
dizer que os trechos nos trazem indícios sobre o imaginário sóciodiscursivo da
atualidade por causa de seu conteúdo, suas estratégias e a relação do discurso
que trazem com medidas que são tomadas na prática social e que se relacionam
com os discursos que estão presentes em diversos meios e suportes, discursos
que trazem a tendência do ideário neoliberal. Essa breve análise é apenas um
questionamento lançado a trabalhos posteriores, considerando a relevância dos
temas levemente abordados.
BARREIROS,
Jaqueline Lopes: Fatores que influenciam
na motivação de professores. 2008. 105 f. monografia. (Graduação em
psicologia) – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2008
CHARADEAU, Patrick: Dicionário de análise do discurso. 2
ed.São Paulo: Contexto, 2006.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Tradução Fabiana
Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2006
CHARAUDEAU, Patrick.
Os estereótipos, muito bem. Os imaginários, ainda melhor. Traduzido por André
Luiz Silva e Rafael Magalhães Angrisano. Entrepalavras,
Fortaleza, v. 7, p. 571-591, jan./jun. 2017.
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em psicologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco, 2016.
[1] Formação discursiva é um conceito elaborado por M. Foulcault e,
posteriormente, reconfigurado por M. Pêcheux; para ambos a formação discursiva
é concebida, segundo Maingueneau (2015) “como um sistema de restrições
invisíveis, transversal às unidades tópicas”.
[2] Pré-discursos, segundo Marie - Anne Paveau (2015), tratar-se-iam de “um conjunto de âmbitos
pré-discursivos coletivos (saberes, crenças, práticas), com papel instrucional
para a produção e a interpretação do sentido em discurso”.
[3] ZEMA, Romeu: Liberdade ainda que tardia - plano de governo.
Partido Novo: Minas Gerais, 2018. Disponível em: http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/MG/2022802018/130000600702//proposta_1533160671813.pdf,
[4] COSTA, Antônio Carlos Gomes. Aventura pedagógica: caminhos e
descaminhos de uma Ação educativa. São Paulo: Columbus Cultural, 1990.
[5] O Construtivismo, em Piaget, é uma teoria sobre a origem do
conhecimento em que o indivíduo passaria por alguns estágios na aquisição e na
construção de seu conhecimento, de acordo com fatores biológicos, de
experiência e exercícios, de interações sociais e de equilibração das ações,
sendo que o conhecimento seria resultado da construção pessoal do indivíduo,
considerando o professor como importante mediador desse processo.
[6] https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/09/14/interna_gerais,1185405/governo-zema-estuda-implementacao-de-escola-publico-privada-em-2021.shtml
[7] Silva (2016) discorre sobre o tema em sua dissertação, onde expõe
as dificuldades de se definir termos como ”direita e esquerda”, apesar da
necessidade de delimitação desses conceitos; segundo ela, “o discurso
produtivista e obediente à lei do mercado tem por base o neoliberalismo, uma
ideologia cujos pressupostos são associados à direita ou àquilo que se
convencionou chamar nova direita (GIDDENS, 1996)”. Ainda é dito que “tal corrente de pensamento
surgiu na Europa e na América do Norte, após a Segunda Guerra Mundial, locais
predominantemente capitalistas. Pode-se dizer que é um movimento que se opõe ao
Estado intervencionista e do bem-estar”. Citando Marrach (2002), diz que
Segundo essa autora, “aqueles que adotam tal discurso tendem a olhar para a
educação como uma mercadoria que deve proporcionar sujeitos com alta
qualificação. Em consequência, defendem um modelo escolar semelhante ao do
mercado, cuja eficiência leve ao desenvolvimento econômico.”
[8] Podemos citar como exemplo a monografia do curso de psicologia da
UniCEUB de Jaqueline Lopes Barreiros, cujo título “Fatores que influenciam na
motivação de professores” anuncia o descontentamento dos professores com,
dentre outros motivos, a forma como são vistos pela sociedade; em três
depoimentos é dito que os professores são vistos como “vagabundos”.
[9] Algumas declarações polêmicas do ex-ministro podem ser vistas na
reportagem da revista Veja, como por exemplo: “Após almoçar, olhando pela
janela, vejo a lápide da educação em frente ao MEC e penso: achava impossível,
mas Paulo Freire visto do alto é ainda mais feio. Ao menos o MEC já está
decorado para o Halloween (dia das bruxas). Tragam as crianças para se
divertirem com um bom susto!” . https://veja.abril.com.br/brasil/os-tuites-mais-imprecionantes-de-weintraub/,
em 15/10/2020
[10] Como bem nos explica Silva (2016), a retórica educacional dos anos
90 ajuda a construir um consenso do mercado no cenário educacional,
(especialmente com a Nova Lei de Diretrizes e Bases), pois “é caracterizado por
grandes mudanças no campo político, econômico, social, cultural e ideológico
decorrentes, principalmente, da crise do sistema capitalista, que desencadeou
uma corrida desigual dos países por mais acumulação de riqueza, tecnologia e ciência.
Com base nessas mudanças, as reformas do Estado em relação ao mundo do trabalho
passaram a ser defendidas por meio de um discurso no qual o vocabulário
empregado focaliza a nova ordem mundial”. (FRIGOTTO; CIVIATTA, 2003) citado por
Silva (2016).
[11]Segundo Dantas (2015), “ hegemonia é o conjunto das funções de
domínio e direção exercido por uma classe social dominante, no decurso de um
período, sobre outra classe social e até sobre o conjunto das classes da
sociedade. A hegemonia é composta de duas funções: função de domínio e função
de direção intelectual e moral, ou função própria de hegemonia (MOCHCOVITCH,
1992, p. 20-21).”